Berços da Reforma Protestante: qual a situação do cristianismo nos países hoje

Nos 507 anos, o Guiame fez um raio-X da situação atual de quatro países que foram os berços do movimento. Todos enfrentam o declínio da fé cristã.

Martinho Lutero ao centro do Monumento da Reforma, em Worms, na Alemanha. (Wikimedia Commons/JD).

Em meio às comemorações dos 507 anos da Reforma Protestante, o Guiame fez um raio-X da situação atual dos países que foram os berços do movimento que causou mudanças não só na igreja, mas em toda a sociedade.

No dia 31 de outubro de 1517, em Wittemberg, na Alemanha, o então monge Martinho Lutero pregou as 95 teses na porta da Igreja Católica, denunciando a heresia e a corrupção do clero, dando início a uma revolução da fé cristã.

Lutero condenou o sistema de indulgências, onde os fieis compravam o perdão e o livramento da punição de seus pecados, e defendeu a salvação somente pela fé em Cristo Jesus. 

O reformador também fez a defesa da centralidade da Palavra de Deus, o livre acesso à Bíblia e o sacerdócio universal dos crentes, onde todo cristão tem acesso direto a Deus através da mediação de Cristo.

Na época, graças à recente invenção da imprensa móvel, as ideias reformadoras de Lutero logo se espalharam para outros países da Europa. Em 1519, o movimento alcança a Inglaterra, a França e a Suíça, fomentando um crescente apoio às reformas e questionamentos às doutrinas da Igreja Católica.

Consequências espirituais da Reforma

Em entrevista ao Guiame, o pesquisador da História da Igreja, Tiago Kieffer, explicou as consequências espirituais da Reforma nos países berços.

“Houve um despertar espiritual em que muitos acolheram a fé luterana, calvinista ou mesmo anabatista como alternativa à Igreja que havia se corrompido durante a Idade Média. Ao terem livre acesso às Escrituras, muitos reconheceram seu pecado e, convertidos, iniciaram um processo contínuo de santificação”, afirmou o teólogo.

“Da Reforma surgiram muitos missionários, especialmente em uma segunda geração, com os pietistas, que se dedicaram à evangelização mundial”, acrescentou.

Kieffer ponderou ainda que houveram conversões superficiais. “Falsos cristãos também estariam presentes em muitas igrejas protestantes. Isso se deve, em parte, à conversão de príncipes. Quando um território adotava oficialmente alguma dessas vertentes protestantes, seus habitantes automaticamente passavam a frequentar as igrejas correspondentes, independentemente de uma conversão genuína”, observou.

Além da Reforma promover a defesa da fé verdadeira e bíblica, o movimento produziu frutos benéficos em todo o mundo, como a liberdade de expressão, liberdade religiosa, democracia e direitos individuais.

Os frutos da Reforma ainda perduram?

Após 507 anos da revolução protestante, a pergunta que surge é: Os frutos da Reforma ainda perduram nos países berços do movimento?

Nas últimas décadas, a Alemanha, Inglaterra, França e Suíça, assim como outros países europeus, deixaram de ser nações protestantes para se tornarem países secularizados. O declínio da fé entre a população desses países é dramático, os classificando como sociedades pós-cristãs. 

Enquanto o Evangelho tem crescido no Sul global (América Latina e África) e no Leste Asiático, a Europa tem enfrentado a queda do número de cristãos, o afrouxamento das doutrinas teológicas e o fechamento de igrejas por falta de membros. Muitos templos foram transformados em bares, restaurantes e hoteis. 

Para Tiago, acontecimentos históricos como o iluminismo, Revolução Industrial e as duas Guerras Mundiais contribuíram para que os países reformadores se tornassem pós-cristãos.  

“Embora a Europa tenha sido o berço da Reforma Protestante, ela também produziu pensadores iluministas que foram responsáveis por fortalecer a ideia de separação entre Estado e Igreja. Filósofos europeus que moldaram o pensamento moderno partiram de pressupostos ateístas, como Simone de Beauvoir, na França”, comentou o historiador.

“Embora não sejam os únicos, esses fatores contribuíram para o declínio do cristianismo como alternativa de modelo de vida”.

Alemanha: igrejas “desconsagradas”

A Alemanha, que foi o centro inicial da Reforma Protestante, hoje é um dos países menos religiosos do mundo. Segundo um levantamento do Grupo de Pesquisa World Views, pela primeira vez em séculos, mais de 50% dos alemães não pertencem mais a uma igreja.

Em 2023, a Igreja Evangélica na Alemanha (EKD), a maior denominação protestante do país, perdeu 593.000 membros.

A principal causa é a saída intencional de membros que não se identificam mais com as igrejas. Além disso, as estatísticas negativas também são impactadas pelo falecimento de membros e pela redução no número de batismos de recém-nascidos

Segundo uma investigação do jornal alemão Süddeutsche Zeitung, 444 locais de culto da EKD foram "desconsagrados", ou seja, não serão mais utilizados para cultos. Os templos acabaram sendo vendidos ou demolidos. Estima-se que nas próximas décadas, centenas de igrejas na Alemanha irão fechar. 

França: o Evangelho floresce novamente

Já na França, um fenômeno diferente está acontecendo. Embora ataques à fé cristã – como aconteceu nas Olimpíadas de Paris – sejam comuns, o número de evangélicos e igrejas cresceu no país.

De acordo com o relatório do CNEF (Conselho Nacional dos Cristãos Evangélicos) de 2022, há 745.000 evangélicos na França. O número aumentou 15 vezes desde 1950. 

E há pelo menos 2.700 locais de culto evangélico ativos no país, de acordo com o relatório “Les Églises Protestants Évangéliques en France 2023”. 

O número mostra que existe uma igreja evangélica para cada 25.000 cidadãos franceses. Os dados não incluem grupos evangélicos que se reúnem em residências ou outros ambientes informais.

Parte do crescimento acontece graças a estrangeiros evangélicos que migraram para a França nos últimos anos.

Enquanto o Evangelho cresce em solo francês, há também uma aversão cultural ao cristianismo, como foi visto na cerimônia de abertura das Olimpíadas de Paris, que blasfemou contra a fé cristã.  

Entre 2018 a 2021, ainda foi registrado uma onda de ataques contra igrejas e profanação de símbolos cristãos. Apenas no ano de 2018 foram 1.063 ataques, incluindo templos incendiados.  

A França – que tem a maior população judaica e muçulmana da Europa — também enfrenta o aumento do antissemitismo desde o ataque terrorista de 7 de outubro de 2023 em Israel. As autoridades registraram 366 atos antissemitas nos primeiros três meses de 2024, um aumento de 300% em relação ao mesmo período do ano passado.

Um ataque antissemita que chocou o país foi o de uma menina judia de 12 anos, que foi estuprada por três adolescentes. Ao mesmo tempo, conversões ao islamismo tem crescido na França.

Na Inglaterra e na Suíça de hoje, é possível observar o aumento da intolerância religiosa contra cristãos, e a normalização de pautas não-cristãs, como o aborto, suicídio assistido e ideologia de gênero.

“Nossos irmãos na Europa, embora desfrutem de facilidades econômicas, sofrem com a perseguição ideológica do movimento woke e o avanço do islamismo”, lembrou o historiador Kieffer.

E enfatizou: “A perseguição em si não gera avivamento. No entanto, entendo que ela pode levar a Igreja a perceber mais claramente a necessidade de buscar o avivamento por meio da oração, da leitura da Palavra e do arrependimento”.

Inglaterra: pregadores de rua presos e 10 milhões de abortos

Na Inglaterra – berço da Reforma Protestante e de grandes avivamentos – os cristãos já são minoria e está acontecendo um aumento expressivo do ateísmo e do Islã entre a população. 

Um estudo recente da Voice for Justice UK revelou que o cristianismo está sob ataque e cristãos sofrem hostilidade e discriminação no Reino Unido, após entrevistar 1.562 cristãos britânicos sobre suas experiências de intolerância e discriminação religiosa.

Mais da metade dos entrevistados (56%) disse que sofre hostilidade ou ridicularização ao falar sobre suas crenças religiosas. O número sobe para 61% entre os cristãos mais jovens, com menos de 35 anos.

Na capital da Inglaterra, pregadores de rua têm sido presos pela Polícia Metropolitana de Londres por pregar a verdade bíblica sobre sexualidade e o islamismo. Muitos evangelistas já foram acusados de “discurso de ódio”, detidos e intimidados por pedestres.

Além disso, o aborto foi legalizado no país em 1967. Desde lá, mais de 10 milhões de bebês foram abortados, conforme a organização pró-vida Christian Concern.

Em relação à Igreja da Inglaterra, a denominação protestante criada na Reforma, a instituição tem relativizado princípios importantes da Palavra de Deus, como o casamento gay. Em 2023, a Igreja Anglicana aprovou líderes “abençoar” casamentos entre pessoas do mesmo sexo.

Suíça: aborto e suicídio assistido legalizados

Na Suíça não é diferente. O “Muro dos Reformadores”, um monumento de João Calvino, William Farel, Theodore de Bèze e John Knox em Genebra, foi vandalizado várias vezes por ativistas progressistas.

Em 2019, o monumento foi pintado com as cores da bandeira LGBT. O Muro é uma das principais atrações turísticas da cidade em que João Calvino desenvolveu seu trabalho depois de 1536.

No país, igrejas evangélicas encontram dificuldades em realizar batismos em locais públicos, como praias. Uma nova interpretação da “Lei da Laïcité” proíbe manifestações públicas de fé, contrariando padrões internacionais de liberdade religiosa.

cultura da morte também está inserida na sociedade suíça. O aborto e o suicídio assistido são legalizados na nação. 

A eutanásia é permitida para pessoas com doenças terminais ou quadros irreversíveis. Em 2020, cerca de 1.300 pessoas usaram os serviços das organizações de suicídio assistido.

“Muito do que a Europa está experimentando é fruto da frieza espiritual. O continente evoluiu em muitas áreas, mas deixou de lado o mais importante: o quebrantamento diante do Senhor”, ponderou Tiago Kieffer.

Para o historiador, diante da situação atual, os países berços necessitam de uma reforma espiritual.

“Hoje, é difícil falar de uma reforma nos moldes do século XVI. Vivemos em uma época marcada por um denominacionalismo gigantesco e uma diversidade enorme de alternativas religiosas. Se uma pessoa não está satisfeita em uma igreja, basta atravessar a rua e frequentar outra. No século XVI, a única alternativa era a Igreja Católica Apostólica Romana. Atualmente, temos acesso a uma infinidade de informações, com textos bíblicos traduzidos para diversas línguas e autores apresentando diferentes perspectivas teológicas”, pontuou Kieffer.

“Se falássemos em reforma nos dias de hoje, seria certamente uma reforma restrita ao âmbito espiritual, aplicada em igrejas locais, e não uma reforma com moldes políticos e sociais que abarcasse um país, como foi a Reforma Protestante”, concluiu.

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